Durante boa parte da história moderna, o trabalho foi a principal fonte de identidade pessoal e
social.
"O que você faz?" era sinônimo de "Quem você é?".
Desempenhar uma função, muitas vezes monótona, era a moeda de troca para o salário que sustentava uma vida, enquanto nos colocava em uma posição específica dentro da sociedade.
Mas o avanço da tecnologia, especialmente da inteligência artificial (IA), está transformando radicalmente essa lógica, nos forçando a redefinir tanto o trabalho quanto a forma como nos enxergamos e usamos nosso tempo.
Com a IA assumindo funções repetitivas e até algumas complexas, a ideia de "trabalho como
identidade" está sendo ressignificada.
Antes, ser professor, motorista, contador ou designer era não apenas o que fazíamos, mas também parte do que éramos.
Agora, essas ocupações estão sendo otimizadas ou mesmo substituídas por algoritmos.
Surge, então, uma questão inevitável: se o trabalho deixa de ser a principal âncora da nossa identidade, como escolhemos - ou somos forçados, seja por imposições de grandes corporações ou por necessidade econômica - a nos identificar e usar o tempo que nos resta?
A Ressignificação do Trabalho.
Com a automação, o trabalho não desaparece; ele muda. A IA, ao eliminar tarefas mecânicas, nos
convida a explorar atividades que antes eram negligenciadas: criatividade, aprendizado, empatia e
colaboração. Essas habilidades, profundamente humanas, apontam para uma nova compreensão
do trabalho como algo mais relacionado à contribuição do indivíduo para o coletivo e menos como
um papel fixo que define quem somos.
No entanto, essa transição levanta questões fundamentais sobre inclusão e igualdade.
Trabalhadores tradicionais, empreendedores individuais e autônomos enfrentam realidades
diferentes, mas interligadas.
Quem não pode ser chamado de "trabalhador" no sentido clássico - seja um microempreendedor, seja um autônomo que presta serviços de maneira independente - terá os mesmos direitos e proteção social que aqueles que ainda estão em empregos formais?
Em muitos casos, esses trabalhadores já enfrentam maior insegurança, com menos garantias
legais e uma renda instável.
Se as mudanças tecnológicas continuarem a ampliar essas desigualdades, podemos ver uma grande parte da população excluída das redes de proteção que deveriam acompanhá-los nessa transição.
A solução passa por reformar os sistemas de direitos trabalhistas, previdência e renda, ajustando-os a novos tempos.
Um exemplo seria expandir os direitos sociais e trabalhistas para qualquer forma de contribuição econômica, independentemente do vínculo empregatício tradicional.
O Tempo: Um Novo Espaço de Identidade.
Se o trabalho ocupa menos espaço na nossa rotina, surge a pergunta: o que faremos com o tempo
livre que se expande?
Idealmente, esse tempo deve ser um território de desenvolvimento pessoal, engajamento comunitário e criação.
No entanto, essa oportunidade será real apenas se as transformações tecnológicas forem acompanhadas de sistemas que promovam vidas mais tranquilas e equilibradas para todos, em vez de se tornarem ferramentas de maior exploração e controle.
É aqui que entra a necessidade de pensar em modelos inclusivos.
Sistemas como a renda básica universal (RBU) poderiam garantir uma base de segurança para todos, permitindo que as pessoas se dediquem ao aprendizado, ao lazer criativo ou ao trabalho em áreas com impacto social, sem a pressão constante de sobreviver financeiramente.
Identidade em Um Mundo de Funções Fluídas.
A IA desafia a própria ideia de identidade fixa.
Em vez de nos definirmos por uma função - "sou médico", "sou engenheiro" -, podemos começar a nos ver como aprendizes contínuos, exploradores de múltiplos interesses.
Mas para muitos, essa liberdade prometida ainda é ilusória.
Se as novas formas de trabalho criadas pela tecnologia forem mal remuneradas ou precárias, o tempo livre e a flexibilidade se tornarão privilégios de poucos, enquanto a maioria enfrentará dificuldades ainda maiores para garantir o básico.
Isso nos obriga a imaginar sistemas que protejam aqueles que ficarem de fora durante a transição
tecnológica.
E não apenas proteger, mas incluir ativamente.
Educação contínua, requalificação, redistribuição de recursos e políticas que incentivem o equilíbrio entre trabalho e vida são fundamentais.
Precisamos de um modelo social que valorize o tempo e o bem-estar humano como direitos essenciais, não como luxos.
O Papel da Sociedade na Criação de Novos Caminhos.
O futuro do trabalho não será apenas moldado pela tecnologia, mas por nossas escolhas como
sociedade. Devemos pensar em um sistema que permita que as transformações tecnológicas
realmente melhorem a qualidade de vida, em vez de se tornarem ferramentas para ampliar
desigualdades. Isso requer uma abordagem que priorize a dignidade humana, que garanta que
todos, desde trabalhadores formais até autônomos e empreendedores, tenham acesso igualitário a
oportunidades e proteção social.
Ressignificando o Trabalho: A Nova Identidade em um Mundo de Tempo Redefinido.
Mais do que nunca, precisamos pensar em como transformar essas inovações em um catalisador
de vidas mais equilibradas, felizes e realizadas.
O trabalho pode ser ressignificado como espaço de propósito, mas somente se as pessoas tiverem a liberdade e os recursos necessários para transformar essa visão em realidade.
Estamos à beira de uma revolução.
Se quisermos que ela beneficie a todos, e não apenas um pequeno grupo, precisaremos de coragem para repensar o que significa trabalhar, viver e ser humano no século XXI.
Ressignificando o Trabalho: A Nova Identidade em um Mundo de Tempo Redefinido.
Valéria Monteiro
Jornalista.

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