
Há momentos na vida em que a violência se infiltra de maneira inesperada, vindo de onde menos se espera. Eu tinha dezesseis anos quando fui agredida pelo meu pai. Não foi uma briga comum, daquelas que se resolvem com um pedido de desculpas ou um abraço depois do calor do momento. Foi um episódio de violência real, onde precisei me proteger fisicamente e saí com sete pontos nas mãos e nos braços, marcas que o tempo apagou da pele, mas não da memória.
Anos depois, ouvi alguém dizer que “eu devo ter merecido apanhar”. Esse tipo de comentário não é apenas cruel, mas também sintomático de uma cultura que normaliza a violência contra mulheres e silencia quem sobrevive a ela.
Mas por que nós, mulheres, tantas vezes evitamos o confronto quando somos intimidadas assim?
O medo das consequências
Desde cedo, aprendemos que reagir pode piorar a situação. Se você enfrenta o agressor, corre o risco de aumentar a violência. Se você denuncia, pode sofrer retaliação. Se você expõe o ocorrido, pode ser questionada, desacreditada, ou até responsabilizada pela agressão. O medo não é irracional; ele é construído em uma sociedade que ainda protege os agressores e julga as vítimas.
A culpa que nos ensinam a carregar
A frase “ela deve ter merecido” carrega um peso cultural enorme. Muitas mulheres passam a vida ouvindo que devem ser obedientes, evitar conflitos, não “provocar” reações negativas dos outros. Assim, quando são vítimas de agressão, podem sentir culpa, como se tivessem feito algo para merecer. Esse sentimento paralisa e impede a denúncia.
A normalização da violência
Quando a violência acontece dentro de casa, o impacto é ainda maior. O lar deveria ser o lugar mais seguro, mas para muitas mulheres, é o contrário. E quando um pai, um parceiro, um irmão se torna o agressor, há um choque entre a realidade e aquilo que fomos ensinadas a acreditar sobre a família. Esse conflito pode levar ao silêncio, à negação, à tentativa de minimizar o ocorrido.

A descrença na justiça
Denunciar é um ato de coragem, mas também uma jornada difícil. Muitas mulheres sabem que enfrentar um sistema que historicamente ignora ou minimiza a violência contra elas pode ser frustrante e cansativo. O medo de não serem levadas a sério ou de que nada mude faz com que algumas prefiram evitar o processo.
A manipulação para te calar
Além do medo e da culpa, há uma outra tática muito usada para silenciar mulheres: a inversão do jogo. Quando tentamos contar nossa versão dos fatos, quando exigimos ser ouvidas, muitas vezes somos acusadas de “interromper demais”, “ser agressivas” ou “não deixar o outro falar”.
Essa estratégia tem nome: gaslighting. Funciona assim: alguém insiste em impor a própria narrativa, não dá espaço para sua versão, e quando você tenta se posicionar, a culpa recai sobre você. De repente, a conversa que deveria ser sobre sua dor se torna sobre seu “comportamento inadequado” ao tentar se defender.
O objetivo disso? Nos fazer duvidar de nós mesmas. Nos fazer sentir que estamos erradas simplesmente por querer esclarecer os fatos. É uma forma sutil, mas poderosa, de calar mulheres e deslegitimar suas experiências.
Romper o ciclo
Mesmo entendendo todos esses motivos, escolher o silêncio não deveria ser a única opção. Registrar um boletim de ocorrência, buscar apoio psicológico, falar sobre o que aconteceu – tudo isso pode ser libertador, tanto para quem sofreu quanto para outras mulheres que possam estar vivendo o mesmo.
E quando tentarem te calar com manipulações, lembre-se: se defender não é interromper. Exigir ser ouvida não é falta de educação. Contar sua história não é agressão.
Eu escolhi não me calar. O que aconteceu comigo não foi culpa minha. E nenhuma mulher merece ouvir que “apanhou porque mereceu”.
A mudança começa quando quebramos o silêncio.
Por que mulheres evitam o confronto?
Valéria Monteiro Jornalista.
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