Embora Campinas fique bem pertinho de Minas, o estado é grande, e a fronteira sul já carrega uma cadência mineira forte — mas com um “R” final que se aproxima mais do que se ouve no interior paulista. Em Belo Horizonte, o “R” é gutural, arranhado lá no fundo da garganta, como um eco francês ou alemão. Já nas falas campineiras, o “R” é retroflexo, o famoso “R caipira”, vibrante e com a língua enrolada, tão típico que parece quase uma assinatura cultural.
Nasci em BH, mas nunca morei de fato em Minas. Apesar dos dois meses de férias que passava lá todos os anos, não sei se daria para dizer que cheguei a morar. Ainda assim, as raízes estavam firmes: meus pais nasceram e cresceram em Minas, e a maior parte da nossa família continua por lá. Eles tinham um orgulho imenso do seu sotaque “belorizontino”, que não por acaso foi eleito recentemente o mais charmoso do país. Esse orgulho se refletia em mim — eles faziam questão de que eu falasse como eles, mesmo quando comecei a estudar em Campinas e os sons ao meu redor queriam me puxar para outros ritmos.
A infância não é exatamente gentil com as diferenças. O que hoje chamamos de bullying, naquela época era um teste de sobrevivência — e para mim, isso incluiu aprender a sustentar a maneira como eu falava. As piadas, imitações e olhares enviesados me ensinaram, sim, a ter casca grossa. Mas foi o respeito e o amor dos meus pais pelo jeito mineiro de falar que realmente moldaram minha resistência. Entre a vergonha e o pertencimento, fiquei com o segundo.
Cresci achando bonito o sotaque carioca do meu avô. Tentava imitar o chiado, o gingado das palavras, e até buscava justificativas para adotar aquele som. Morei quase uma década no Rio e desenvolvi um senso profundo de pertencimento à cidade — mas o sotaque, mesmo com todo convívio, nunca me pegou. Nunca foi um esforço para evitar, simplesmente não aconteceu. Meu sotaque ficou misturado, mais sutil, com nuances adquiridas aqui e ali, mas ainda reconhecivelmente parecido com o dos meus pais.
Minha filha, nascida em Campinas, viveu parte da infância no Rio e passou uma década em

, onde foi alfabetizada. Quando voltamos a Campinas, ela carregava um sotaque americano que era, ao mesmo tempo, adorável e cômico. Lembro do nosso espanto e das gargalhadas com o nome de um novo colega de escola: Arthur — não pela dificuldade de pronunciar com o sotaque americano, mas porque o jeito abrasileirado, com o “R” gutural que ela tinha aprendido de mim, soava confuso demais para os próprios ouvidos. O “TH” em inglês, pronunciado com a língua entre os dentes, foi um dos maiores desafios. Para nós, brasileiros, era difícil de aprender, mas para ela, o que parecia engraçado era justamente a confusão de entender o que os outros diziam, sem saber exatamente como pronunciar.
Com o tempo, foi surgindo nela um sotaque híbrido, só dela, mas parecido com o meu — um “R” mineiro, gutural, salpicado de gírias campineiras. Como se, no fim, a voz da casa tivesse mesmo um campo gravitacional próprio.
Sotaques são muito mais que jeito de falar — são identidade, são memória. Carregam histórias, valores, afeto. E também provocam reações. Em uma aula brilhante sobre moralidades cotidianas, o professor Paul Bloom, da Universidade Yale, apresentou um estudo marcante: enquanto bebês não demonstravam qualquer rejeição baseada na cor da pele, reações de estranhamento e até recusa surgiam ao ouvirem diferentes sotaques. O que parecia “familiar” ou “diferente” estava, antes de tudo, na voz. No som.
Lembro de ouvir meu pai dizer que, na época das telefonistas, ligava para a Bahia só para escutar o sotaque das atendentes. Aquilo me causava um desconforto difícil de nomear. Talvez fosse ciúme cultural. Ou só a estranheza de ver alguém se encantar por uma voz que não era a da própria casa. Me parecia uma espécie de traição — como se, mesmo sem intenção, ele flertasse com um jeito de falar que não era o nosso. Como se a beleza de outro sotaque ameaçasse o pertencimento que ele mesmo tanto valorizava.
A convivência com diferentes sotaques é uma das maiores riquezas de viver em um país como o nosso. Ela nos desafia a escutar melhor, a compreender o outro com mais generosidade. Mais ainda: essa diversidade sonora estimula a cognição, amplia vocabulários, revela modos únicos de pensar o mundo. É como se cada sotaque fosse uma lente nova para ver a realidade.
Se cada língua carrega uma cultura inteira, cada sotaque revela o território emocional de um povo. O meu — que começou mineiro, passou por Campinas, viveu o Rio, ecoou Nova York pelos ouvidos da minha filha e continua em trânsito — é um mosaico afetivo. E que bom que seja assim: híbrido, enraizado e ainda em transformação.
O Sotaque que Transita Entre Fronteiras.
Por Valéria Monteiro.
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